A pandemia expõe de forma escancarada a desigualdade social

25 de abril de 2020 - 00:09 # #

I.

As maiores vítimas da pandemia são, inegavelmente, os trabalhadores temporários e sub-remunerados, os que vivem de atividades informais, os desempregados e os sem teto por habitarem as áreas mais precárias das grandes cidades brasileiras. No Ceará, os dados mostram que na capital Fortaleza, a taxa de mortalidade apresenta variações decorrentes das desigualdades socioeconômicas e de moradia, sendo relativamente baixa nos casos do Meirelles (5%) e Fátima (11,9%) e bastante elevada na Barra do Ceará (28,57%) e Jangurussu (21, 42%).

Apesar de haver muitas pessoas infectadas nos bairros ricos, poucas morrem; as mortes são mais numerosas em bairros populares, conjuntos habitacionais e favelas, enfim, no que chamamos de “periferias”. Nestes locais as condições habitacionais e a infraestrutura são precárias, faltam equipamentos urbanos e serviços básicos. Não menos importante, os moradores destas áreas periféricas e desassistidas pelo poder público sofrem preconceitos, humilhações e, em decorrência, tem uma baixa autoestima. Essa dimensão subjetiva do cotidiano das famílias trabalhadoras agrava o quadro de pobreza, que não pode ser medido apenas por estatísticas, embora estas sejam valiosos instrumentos de análise, como mostra o Mapa a seguir.

Alguns diriam: mas isso é Nordeste! Na verdade, podemos observar o mesmo fenômeno da desigualdade na capital paulista: no Morumbi, bairro nobre da burguesia, foram registrados 297 casos positivos e 7 mortes, ao passo que em Brasilândia, bairro de operários e imigrantes, os infectados somavam 89 e os mortos 54 pessoas.3 Na grande potência mundial, os EUA, está comprovada a alta incidência da COVID-19 entre afro-americanos, conforme artigo recente de Jamelle Bouie, publicado no New York Times.

Este quadro desalentador é agravado pela crise da saúde pública, da falta de planejamento, de recursos humanos e financeiros, de pesquisa científica, entre outros fatores. De fato, o Sistema Único de Saúde (SUS), devastado por décadas de políticas neoliberais, vem sendo demolido em nome da eficiência do setor privado e da rentabilidade econômica da indústria farmacêutica, seus laboratórios e hospitais. Reconhecer a atual fragilidade do sistema de saúde pública ainda não é o bastante para compreender a desigualdade em tempos de coronavírus.

II.

Mas quem define o que é desigualdade social? Segundo relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de dezembro de 2019, o Brasil é o sétimo país do mundo com maior desigualdade social (índice de Gini de 0,533), apesar do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) relativamente alto (0,761).5 Seria aceitável entender a desigualdade social medida apenas pelo IDH, cujos indicadores são renda, educação e longevidade? Talvez, seja decorrente de comportamento individual: pobre tem muito filho, é preguiçoso, não sabe poupar, investir etc.? Ou ainda uma casualidade, um efeito indesejado do sistema econômico, uma falha passível de ser corrigida com política públicas compensatórias?

Compartilho da concepção que a desigualdade é estrutural ao capitalismo, sistema socioeconômico que descarta e incorpora características da sociedade de classes existente em meados do século XIX, no Ocidente. É uma relação social que nos exige responder: desigual em relação ao que e a quem?

A sociedade brasileira moderna, industrial, urbana do século XX tem raízes na sociedade colonial, patriarcal, escravagista. O que mudou de fato no Brasil independente e republicano? Em que medida se alterou a estrutura social estabelecida em que milhares de pessoas das classes trabalhadoras, em especial índias e negras, são:

• relegadas a trabalho subalternos (agricultura, doméstico, construção civil),
• recusadas em atividades industriais (reservadas em parte aos imigrantes europeus) ou mais bem remuneradas,
• maltratadas como cidadãos de segunda classe,
• perseguidas em suas manifestações culturais e religiosas,
• violentadas em seus direitos,
• jogadas nas ruas (a população de rua é inviabilizada, nem sequer entra nas estatísticas demográficas cuja unidade é o domicílio),
• encarceradas em massa (o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, em sua maioria composta de jovens negros),
• submetidas ao genocídio, à chacina e ao extermínio.

Ao longo dos séculos, se construíram e consolidaram padrões sociais que vem pautando o comportamento pessoal e político da maioria da população brasileira. Se a sociedade não é democrática, mas extremamente desigual, como ter um Estado democrático de direito? A igualdade é fruto de lutas por direitos, incluída nas constituições no aspecto da formalidade jurídica. Na vida real, existem muitas formas de desigualdade, umas às claras outras disfarçadas com hipocrisia, por exemplo, o racismo. Os grandes esquecidos são os moradores de rua e os presos!

III.

No Brasil atual, a igualdade é uma quimera, uma miragem. O cenário se apresenta trágico: desemprego em alta, precariedade do trabalho, salário achatado, desindustrialização etc. Em meio a tantas incertezas, uma certeza: enquanto persistirem estes padrões de desigualdade, são os trabalhadores, suas famílias e comunidades que vão sucumbir à COVID-19. Estão sendo empurrados a uma escolha perversa e mentirosa entre a atividade econômica, assegurando o alimento, ou o isolamento social, garantindo a sobrevivência. Mas que economia se salva, quando não há mais trabalhadores para fazê-la funcionar? O Brasil tornou-se laboratório de um experimento totalitário neoliberal. É preciso quebrar os padrões das desigualdades antes que nos quebrem!

 

Mônica Dias Martins